sábado, 19 de abril de 2014

Albert Hofmann e o Dia da Bicicleta


Hoje, no Golden Gate Park, em San Francisco-CA, está sendo realizada a Hofmann's First Annual Bicycle Day Parade. A festividade comemora não apenas a bicicleta, mas, sobretudo, a viagem psicodélica. Mas qual a relação entre ciclovia e psicodelia?, você talvez perguntaria. Bem, se quiser mesmo saber, acomode-se bem e façamos logo uma visita ao laboratório daquela famosa companhia suiça de produtos químicos, fundada em 1886, por Edouard Sandoz.



entrando no laboratório

Em 1929, o químico suíço Albert Hofmann foi trabalhar no laboratório da companhia de produtos químicos Sandoz, com a equipe do professor Arthur Stoll, cuja atividade principal consistia basicamente em isolar alcaloides, investigar e produzir amostras puras dos princípios ativos de plantas.
Laboratório da Sandoz

Alcaloides são substâncias presentes em certas plantas – assim como em certos fungos, bactérias e animais – que podem produzir efeitos psicoativos diversos, tais como torpor, anestesia, energia, excitação, tremores, delírios, alucinações etc. São em geral identificadas pela terminação ina, como cafeína, morfina, cocaína, heroína, mescalina, leonorina...

Hofmann (1980) nutria especial interesse em plantas cujos princípios ativos são instáveis, ou cuja potência está sujeita a uma grande variação, o que torna difícil uma dosagem exata. Trata-se de plantas que podem tanto remediar quanto envenenar, de acordo, por exemplo, com a dose e as interações com outros fatores bioquímicos e psicossociais. O termo phármakon, em grego, significa ao mesmo tempo remédio e veneno (Derrida, 2005), embora grande parte de nossa sociedade associe a imagem do veneno somente ao termo droga e a do remédio ao termo fármaco. Apesar da etimologia controversa da palavra droga (Vargas, 2008), com várias hipóteses levantadas (por exemplo, na Holanda, droghe vate significava barril de folhas secas), o uso corrente do termo indica algo ruim (que droga!), tal como na língua inglesa, onde a palavra junk se refere tanto a drogas pesadas, como morfina e heroína, quanto a “lixo”, “algo imprestável” (Harris, 2005). Por aqui, em geral, se costuma considerar, automaticamente, o uso de substâncias prescritas pela indústria farmacêutica e obtidas legalmente em farmácias e drogarias como algo sempre benéfico e o uso de “substâncias psicoativas e matérias-primas para sua produção, que, em razão da proibição, são qualificadas de drogas ilícitas” (Karam, 2008), como algo sempre maléfico. Trata-se apenas de um arbítrio jurídico-moral. Ao isolar os alcaloides e obter na forma pura o princípio ativo dessas plantas, o que os cientistas da Sandoz queriam era “fabricar um preparado farmacêutico estável” para se tentar estabelecer então uma dosagem terapêutica segura. Nessa busca da dose ideal, a equipe estudava amostras de plantas batizadas com nomes fantásticos e elegantes, como a Digitalis purpurea, ou dedaleira, a Scilla maritima, ou cebola marítma, e a cravagem do centeio, também chamada esporão do centeio, ergot, ou, o nome talvez mais irresistível, Claviceps purpurea.
Claviceps purpurea
A ergotina, presente na Claviceps purpurea, fungo que se forma principalmente em grãos de centeio estragados, é uma substância tão instável que, ao longo dos séculos, mostrou que, em certas doses, podia matar ou mutilar, em doses precisas podia ajudar a medicina e, em doses tóxicas, causar fortes perturbações mentais (Cashman, 1970). O ergot produz o ergotismo ou fogo de Santo Antão, doença que, durante mais de 600 anos, provocou mortes e mutilações na Europa, pela constrição dos capilares da extremidade do corpo. Por outro lado, a cravagem do centeio produz contrações uterinas e o risco de sua utilização como auxiliar no trabalho de parto foi assumido durante séculos no Oriente Médio: a ergotina, usada no momento ou de modo incorreto, podia chegar a matar a criança, a mãe ou ambas; mas, na quantidade e momento oportunos, “era um verdadeiro benefício para a gestante”.
Mas mesmo o princípio ativo isolado da ergotina, o ácido lisérgico, com que o laboratório da Sandoz trabalhava, ainda mostrava-se muito instável, ao menos até 1938. Foi quando Hofmann encontrou um processo útil para combiná-lo com outras substâncias e produziu uma série de compostos. No dia 2 de maio, "com a intenção de obter um estimulante circulatório e respiratório", produziu o vigésimo quinto da série de compostos, a dietilamida no ácido lisérgico (Lyserg-saure-diathylamid), que acabou recebendo a sigla LSD-25. Testes laboratoriais indicaram fortes efeitos no útero e foi observado que animais experimentais ficavam inquietos sob efeito da droga. Mas, na ocasião, o fármaco não despertou interesse, sendo os testes descontinuados. O pessoal da Sandoz não fazia a mais remota ideia do que havia sido produzido.
Hoffman no laboratório
Durante cinco anos não se ouviu falar do LSD-25, embora Hofmann tenha continuado a pesquisar com a Claviceps purpurea, tendo chegado, com isso, a produzir remédios diversos, como o Hydergine, medicamento para a circulação periférica e a “função cerebral no controle das desordens geriátricas” que chegou a ser, por anos, “o produto farmacêutico mais importante da Sandoz”. Mas o cientista não abandonara o “relativamente desinteressante LSD-25”.


Ao contrário, cinco anos após sua primeira síntese, Hofmann, então diretor adjunto do laboratório, sentiu-se tomado por um “pressentimento peculiar, o sentimento de que esta substância pudesse possuir propriedades diferentes das que foram estabelecidas nas primeiras investigações”. Tal pressentimento o induziu a sintetizar novamente o LSD, o que era bastante incomum, “uma vez determinada a falta de interesses farmacológicos”. Mas seu empenho em seguir a intuição, assim como sua atitude de experimentação radical, seriam essenciais para o que a ciência estava para criar.
Molécula de LSD
Numa tarde quente da primavera de 1943, mais exatamente no dia 16 de abril, sexta-feira, o tartarato de destro-dietilamida do ácido lisérgico-25 foi, após cinco anos, mais uma vez sintetizado. Durante a conclusão dessa nova síntese do LSD-25, Hofmann sentiu que precisava interromper o trabalho e voltar para casa, “afetado por uma inquietude notável, combinada com uma leve vertigem”, conforme descrevera depois, em um relatório enviado ao professor Stoll. No relato, conta que, ao chegar em casa, deitou e afundou em uma experiência “não desagradável de embriaguez, caracterizada por uma imaginação extremamente estimulada”. Achando incômoda a luz do dia, manteve os olhos fechados e, em um estado quase onírico, assistiu a “um fluxo ininterrupto de imagens fantásticas, formas extraordinárias com um intenso jogo de cores caleidoscópico”. Esse estado evanesceu em aproximadamente duas horas.
Tentando entender o que ocorrera, lembrou ter manipulado o ácido lisérgico, embora não tenha compreendido como conseguira absorver, em algum contato acidental bem leve – pois nem se lembrava de ter ocorrido –, uma dose grande o suficiente para causar os efeitos que foram vividos, experienciados, de modo tão vívido, intenso, exuberante. Imaginou então que devia se tratar mesmo de uma droga com uma potência extraordinária. Mas sua atitude de cientista logo sinalizou-lhe que já era hora de ir além de quaisquer devaneios e especulações: “parecia haver somente uma maneira de se chegar ao fundo disto. Decidi fazer uma auto-experiência”.

saindo do laboratório

Assim, numa segunda-feira, 19 de abril de 1943, mais especificamente às 16:20, Hofmann se auto-administrava 250 microgramas de LSD-25 no laboratório da Sandoz, sem fazer ideia ainda que estava absorvendo dez vezes a dose que, no futuro, seria estabelecida como a mínima eficaz para obter os efeitos psicoativos que ainda estavam por serem descobertos. Às 17:00, após registrar ter sentido vertigem, ansiedade, distorções visuais, paralisia e vontade de rir, cessava as notas em seu diário de pesquisa. Já estava claro que o LSD tinha sido mesmo a causa da extraordinária experiência anterior, “pois as percepções alteradas eram do mesmo tipo de antes, embora bem mais intensas”. Teve que lutar para falar de modo inteligível e pedir ao assistente de laboratório, que estava ciente do experimento, que o acompanhasse até em casa. Como “nenhum automóvel estava disponível por causa das restrições de uso durante a guerra”, foram de bike. Há exatos 71 anos, foi realizado um dos passeios mais fantásticos pelas ciclovias da mente.
Blotter comemorativo
Mas aos poucos sua experiência subjetiva foi começando a tomar formas mais ameaçadoras. Na viagem, todo seu campo de visão “ondulava e se distorcia como se visto num espelho torto”. Com isso, começavam a oscilar e se distorcer também alguns dos parâmetros espaço-temporais que servem usualmente de referência, de contorno para uma imagem de si: a identidade também começa a ser perturbada. Imagina você ter tido a “sensação de não ser capaz de sair do lugar”, mas ouvir depois, de seu colega, que “tínhamos viajado muito rápido”... Sua percepção do tempo e do espaço está muito alterada. Sua? O ambiente ao redor se encontra transformado: tudo parece girar e os objetos mais familiares assumem formas grotescas, ameaçadoras, em contínuo movimento, “animadas, como se dirigidas por uma inquietude interna”. Há poucos instantes havia pedido para chamar o médico da família e agora mal consegue reconhecer a vizinha que lhe traz o leite, também solicitado, pois ela se tornou “uma bruxa malévola, insidiosa com uma máscara colorida”. Muito impressionantes também as alterações que começa a sentir internamente: “um demônio tinha me invadido”, tomando posse de “corpo, mente, e alma”, triunfando sobre a vontade, arrasada “pelo medo terrível de ter enlouquecido”. Está em outro lugar, outro mundo, outro tempo. O corpo, estranho e sem vida, talvez esteja morrendo: “seria isto a passagem?”. Fora de si, ante o medo de uma morte por vir, se culpa por não ter se despedido da família: “será que eles entenderiam que eu não tinha experimentado de modo irrefletido, irresponsável, mas com extrema precaução, e que tal resultado era totalmente imprevisível?” Bastante paranoico, quer beber leite, muito leite.
Quando o médico da família finalmente chega, a paranoia tinha passado, mas é o assistente de laboratório que o informa da experiência, pois Hofmann ainda não consegue formular frases muito coerentes. O médico nota as pupilas dilatadas, mas sua avaliação não aponta qualquer sinal de anormalidade: pulso, pressão sanguínea e respiração estão normais; não há razão alguma para prescrever qualquer medicamento. Ao invés disso, o médico leva Hofmann para a cama e senta-se ao lado, acompanhando o lento retorno desse mundo estranho, no qual, pouco a pouco, o cientista começa a contemplar cores sem precedentes e jogos de formas que persistem sob os olhos fechados. Vão surgindo imagens caleidoscópicas fantásticas, “alternando, variando, abrindo e se fechando em círculos e espirais, explodindo em fontes coloridas, reorganizando e se cruzando em fluxos constantes”. Nessa reorganização cruzada, a percepção acústica se transforma em percepções óticas e todo som gera “uma vívida imagem variável, com sua própria consistência, forma e cor”. Passadas algumas horas, exausto, cai no sono, “para despertar na manhã seguinte revigorado, com a mente clara, embora ainda um pouco cansado”, mas sentindo fluir “uma sensação de bem-estar e vida renovada”. No dia seguinte, sua percepção estava diferente, com sede de vida: “o mundo estava como que recriado. Todos meus sentidos vibravam em um estado da mais alta sensibilidade que persistiu por todo o dia”.
Animação italiana inspirada na experiência de Hofmann

A conclusão do auto-experimento de Hofmann mostrou o LSD-25 se comportando como “uma substância psicoativa com propriedades e potência extraordinárias”. Não se conhecia outro fármaco capaz de produzir efeitos tão intensos em doses tão baixas. Hofmann era um homem de ciência e estava seguro que o LSD “teria uso na farmacologia, na neurologia e especialmente na psiquiatria”, embora naquele momento “não tivesse a mínima suspeita de que a nova substância também viria a ser usada além da ciência médica, como um inebriante”. Tampouco reconheceu, à época, a “conexão significativa entre a inebriação por LSD e experiências visionárias espontâneas, até bem depois, após experiências adicionais levadas a cabo com doses bem mais baixas e sob condições diferentes”. Inúmeros usos e sentidos ainda estavam por ser descobertos e inventados para o LSD. Embora o tema convide a mais esclarecimentos em outro texto, não podemos deixar de colocar que, após a proibição do LSD e sua entrada na agenda I de drogas mais perigosas, para as quais não se reconhece uso médico, é em clima de comemoração que a psicodelia tem vivido atualmente. Hofmann passou décadas lamentando a proibição das pesquisas científicas com o LSD, mas, antes de morrer em 2008, aos 102 anos de idade, teve a felicidade de conhecer a recente retomada dos estudos com fármacos psicodélicos, na Suiça, embora não mais com LSD produzido pela Sandoz (a empresa fundiu com a Ciba-Geygi, em 1996, formando a atual Novartis; há décadas não fabrica mais LSD e a história da substância sequer consta na homepage, mas isso é assunto para outro texto).. E nós temos ainda a felicidade de recebermos a recente divulgação das primeiras publicações de resultados da primeira pesquisa com LSD realizada em quatro décadas. Mas isso também já seria assunto para outro texto. Bem, embora eu tenha muito texto para elaborar hoje e não vá me furtar ao compromisso, preciso deixar registrado que agora são 16:20 e a tarde ensolarada está mesmo para quem puder comemorar, passear, viajar, seja por rodovias, ferrovias, ciclovias, hidrovias, psicovias e outras tantas psicodelias. Portanto, aproveitem e boa viagem! Mas, com prudência. Levem água, capacete, leite etc...

Hofmann, ao completar 100 anos


Referências:
CASHMAN, John. LSD. São Paulo: Perspectiva, 1970.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. (1972). São Paulo: Iluminuras, 2005.
HARRIS, Oliver. Introdução do editor. Em BURROUGHS, William. Junky. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
HOFMANN, Albert. LSD - My Problem Child. McGraw-Hill Book Company, 1980. (disponível em pdf)
KARAM, Maria Lucia. A Lei 11.343/06 e os repetidos danos do proibicionismo. Em: LABATE et al (orgs). Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2008 (também disponível em pdf)
VARGAS, Eduardo V. Fármacos e outros objetos sócio-técnicos. Em: LABATE et al (orgs) op. cit. 2008.

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